“O SABIO É AQUELE QUE SABE QUE TEM QUE
SABER MUITO MAIS”
Mestre camisa

13.7.08


Quando o assunto é Capoeira, ele irradia entusiasmo, energia, compreensão, força de vontade, determinação e muito mais. Estamos falando de Mestre Camisa, Presidente Fundador da ABADÁ Capoeira.
RC: Fale-nos um pouco sobre o ambiente em que nasceu, Mestre.Mestre Camisa: "O dia-a-dia na fazenda "Estiva" era típico: acompanhava os vaqueiros em suas atividades diárias e lá vivi até os 12 anos, quando minha família se mudou para Jacobina, a 40 minutos da fazenda. Depois nos mudamos para Salvador. Eu gostava de montar a cavalo, caçar, tomar banho de rio, criar animais, uma vida comum de um garoto de fazenda. Naquela época não conhecia televisão, telefone - só conheci quando fui para Salvador."
RC: Como foi o seu primeiro contato com a capoeira?"Foi ainda garoto, ouvindo as histórias que os mais velhos contavam sobre os capoeiristas do Sertão que tinham o corpo fechado, que se movimentavam no chão, davam rasteira, derrubando várias pessoas ao mesmo tempo e ninguém conseguia segurá-los. Eu sequer conhecia o berimbau. Camisa Roxa foi estudar em Salvador e lá conheceu alguns capoeiristas e foi treinar na academia de Mestre Bimba. Nas férias, quando voltava para a fazenda, passava o que aprendia para mim, meus outros irmãos e meus primos. Certa vez ele me levou a Salvador e tive o prazer de conhecer Mestre Bimba, que só conhecia de nome. Senti toda a sua força. Vendo todos treinarem, fiquei fascinado. Ao voltar para a roça fiquei mais motivado e passei a treinar no curral, dando pulos sobre o esterco do gado. Dava saltos mortais na beira do rio, todos da família estavam aprendendo. Depois que meu pai faleceu, a família se mudou para Salvador e minha mãe continuou cuidando da fazenda. Fui morar na Liberdade, o maior bairro negro, um dos maiores redutos de capoeira de todos os tempos de Salvador, onde se realizavam as tradicionais rodas de capoeira de Mestre Valdemar e Mestre Traíra."
RC: Quem treinava com você na Academia de Mestre Bimba, na sua época?"Treinavam comigo Onça Negra, Macarrão, Torpedo, Pimentão, Nenel, Formiga e Demerval. Na época já eram formados e treinavam lá: Canhão, Alegria, Luís, Quebra Ferro, Malvadeza, Valdemar, Sarigue e muitos outros."
RC: Como surgiu o apelido Camisa?"No início o pessoal me chamava de Camisinha, tanto por ser o mais novo quanto por ter um irmão - no caso o Camisa Roxa -, formado pelo Mestre Bimba. Eu fui o quarto da família a me formar. Com o tempo meu irmão mais novo passou a ser chamado de Camiseta e passaram a me chamar de Camisa."
RC: Seja na Bahia ou no Rio, qual foi o momento que mais te marcou, como capoeirista?"Quando conheci o Mestre Bimba."
RC: No Rio, o que te levou a montar a Abadá-Capoeira?"Em Salvador fiz parte do grupo folclórico chamado Viva Bahia e do Grupo Ogundelê, fazendo apresentações e shows. Depois do grupo Olodumaré, do qual o Camisa Roxa fazia parte. Viajamos por todo o Brasil, até que cheguei ao Rio. Nesta época já havia comentários de que Mestre Bimba ia embora para Goiás. Camisa Roxa resolveu ir para a Europa. Foi quando minha mãe faleceu e eu fiquei desorientado. Meu irmão chegou a comprar uma passagem para que eu voltasse para Salvador e retomasse meus estudos. Rasguei a passagem e resolvi ficar no Rio. Me aventurei a dormir na rodoviária e dentro dos ônibus. Joguei capoeira em todos os lugares da cidade até que fui morar e dar aula na Academia Nissei. Como comecei a ensinar muito cedo, meu sonho era ter meus alunos e meu grupo. Foi lá que formei minha primeira turma no Rio. Meu primeiro aluno foi um gaúcho que me conheceu na tourneé no Rio Grande do Sul com o grupo Olodumaré.
Aqui no Rio encontrei o Preguiça e o Anzol que também foram alunos de Mestre Bimba e alguns integrantes do grupo Senzala, como o Rafael (um dos fundadores), o Cláudio, o Borracha e o Hélio, que conheci na Bahia e eram muito amigos do Camisa Roxa. Passei a participar de algumas rodas do grupo ao ponto de levar os meus alunos e promover integrações até que, após um ano, me convidaram e passei a fazer parte do grupo. Quando saí, criei o Capoeirart. Já tinha alunos no Rio em alguns estados. O trabalho cresceu tanto que tivemos que criar uma associação, porque eu achava que com isto meus alunos não iriam passar as dificuldades que eu passei quando cheguei aqui. Eu pensei em uma associação de desenvolvimento que apoiasse os capoeiristas, a sigla deu Abadac, mas minha filha Tatiana acabou sugerindo o nome Abadá-Capoeira - Associação Brasileira de Apoio e Desenvolvimento à Arte-Capoeira. Isto foi em 1988."
RC: Qual a sua filosofia de vida?"Minha filosofia de vida é a capoeira. Jogo desde criança, ela se desenvolveu dentro de mim. Minha forma de ver o mundo é através dela, que me deu condições de aprender a respeitar o próximo, saber que nessa vida somos todos iguais, independente de condição social. A capoeira me deu jogo de cintura para conseguir superar as dificuldades do dia a dia e me ensinou a ganhar e a perder, principalmente a perder, porque para ganhar todo mundo está preparado. Me deu condições de ter uma profissão com a qual que eu me identifico totalmente e sobrevivo tendo liberdade de agir, pensar e desenvolver meu trabalho da forma que eu achar mais correta. Nunca tive outra profissão e nem gostaria de ter. Crio e educo meus filhos com a Capoeira. Através da capoeira eu tenho a possibilidade de ajudar muita gente e também de ser ajudado. Foi dentro dela que fiz muitas amizades e aprendi tudo o que tento passar para os meus alunos. Por isso é que uma brincadeira de criança se transformou numa filosofia de vida."
RC: Qual a relação que há entre a vivência do capoeirista dentro da roda de capoeira e na vida pessoal? "Na roda de capoeira temos que tentar ludibriar, confundir e envolver o outro jogador para induzi-lo a fazer o que se quer. São táticas que nos ensinam a ter jogo de cintura e a perceber a maldade. Também ajudam a ver a vida de uma maneira maliciosa quando se dobra uma esquina. Agora não se pode levar para a relação diária dos capoeiristas, se não ninguém nunca poderá confiar em ninguém. Acontece que alguns acabam fazendo na vida o que deveriam fazer dentro da roda e este é um dos conflitos do mundo da capoeira. As pessoas levam a falsidade e a malandragem para a vida. É preciso saber separar. Para mim por exemplo, que sou um sujeito sincero, é difícil ter amizade com este pessoal que só visa tirar proveito de tudo e que se alguém vacilar toma logo uma rasteira. A esperteza e malícia devem ser mostradas dentro da roda."
RC: O que você acha da capoeira atual? "Acho que ela cresceu muito, mas a formação de seus professores ainda deixa a desejar. São poucos os lugares que oferecem uma formação adequada para as pessoas que querem dar aula de capoeira."
RC: E a capoeira no exterior? "Também está crescendo muito. No exterior não existem os preconceitos e as dificuldades que existem no Brasil. E é por isso que o camarada sai daqui despreparado e vai trabalhar no exterior. O que salva é que tem também gente muito boa lá. Isso é reflexo da má formação dos professores de capoeira no Brasil. Os estrangeiros estão se preparando e vindo ao Brasil se aperfeiçoar em capoeira. Se não melhorar a formação dos professores brasileiros, esse mercado de trabalho acabará preenchido por eles mesmos."
RC: O que você acha dos capoeiristas que associam a imagem do grupo Abadá à violência? "Primeiro gostaria de fazer uma correção: a Abadá não é um grupo, a Abadá é uma escola de cidadãos, uma escola popular que forma brasileiros conscientes de suas raízes e identidade cultural. Abadá é uma instituição, uma entidade de capoeira. Quanto à pergunta, eu pessoalmente sou contra qualquer tipo de violência. Acho que estão confundindo eficiência com violência. Violência é o que fazem com a imagem da Abadá, desinformando intencionalmente as pessoas como tática de impedi-las de conhecer o nosso trabalho. As conquistas da Abadá foram através da boa capoeira, o que é inegável. Tinham que arranjar alguma forma de falar mal e inventaram essa mentira, mas não nos influencia em nada, só faz nos unir e ajuda a fazer com que a Abadá trabalhe cada vez melhor. Violência é o que estão fazendo com a capoeira: que é a auto-intitulação de Mestres; a má formação dos capoeiristas e a situação degradante em que vive a maioria dos Mestres antigos, passando necessidade e alguns vivendo na miséria."
RC: Qual a melhor maneira de se trabalhar com capoeira? "Antes de tudo é preciso conhecer a capoeira e ter consciência de tudo que envolve a sua cultura. Isso é fundamental para se saber o que está fazendo. Procurar formar uma boa equipe para realizar um bom trabalho. Não interessa o sobrenome ou o estilo, se é Regional, Angola. O que importa é ter responsabilidade, saber passar seu trabalho de maneira correta. Não parece, mas ensinar capoeira é muito complexo. Ela é a reunião de várias artes numa só. O capoeirista precisa ser um grande administrador para saber lidar com essa luta, esse jogo, essa ginástica, essa terapia. Por isso o trabalho da Abadá é um trabalho de equipe porque se trata de um trabalho pesado, em que se procura desenvolver todos os aspectos da capoeira."
RC: Abadá-Capoeira é um estilo de capoeira? "Na verdade, ela é um sistema de capoeira, uma forma de trabalhá-la, incluindo todos os seus segmentos e tendências. Nós fazemos um laboratório de todos os estilos que existem no Brasil, somados às lutas africanas. A junção dos valores da capoeira antiga, da angola e da regional. Sempre procurei pesquisar, principalmente as artes marciais e as lutas africanas. Sempre que viajo para outro país, procuro saber que luta se pratica naquele lugar. Como luta, a capoeira só precisa aprimorar o que já possui. Dentro da Abadá, um movimento às vezes gera um outro que nem sempre é visto na angola, na regional ou em qualquer outra luta. Com uma equipe estudamos os movimentos antigos e criamos novos. Hoje temos nossas características e técnicas típicas da Abadá-Capoeira, sem nos basearmos em nenhuma outra luta. Não queremos monopolizar nada, apenas temos fundamento no que fazemos. A Abadá é apenas mais um segmento da capoeira, sem alienação. Tudo tem um porquê científico, medido por uma equipe altamente qualificada que mede cada movimento de acordo com o biotipo da pessoa. Temos professores de educação física, história, antropólogos, enfim, tudo como forma de errar menos. O que for bom para a capoeira será sempre bom para mim."
RC: Como é que se forma um Mestre na Abadá-Capoeira? "Um Mestre não se forma, ele se torna. Os antigos conquistaram o reconhecimento da comunidade capoeirística por seu tempo, trabalho e experiência. Tiveram erros e acertos. Hoje muitos saem formando e se auto-intitulando como Mestres, sem sequer ter idade, trabalho e muito menos vivência para isso. Geralmente o fazem por questões financeiras, mas desvalorizando quem realmente é Mestre. A palavra está tão desvalorizada que já virou apelido, assim como as palavras grupo, batizado, etc. Na Abadá, um de nossos objetivos é resgatar o verdadeiro valor do Mestre. É possível ganhar dinheiro, dar aulas, produzir trabalhos literários e cursos sem ser Mestre, e nosso trabalho está aí para confirmar isso. Se eu fosse usar esses critérios que eu vejo por aí, na Abadá teria mil Mestres, por isso é melhor ter um que vale por mil do que ter mil que não valem por nenhum. Só agora na Abadá iremos reconhecer mais dois Mestres."
RC: O novo dicionário Aurélio foi acrescido de alguns termos de capoeira. Como foi essa experiência? "Acho que isso foi um reconhecimento. O Aurélio nos procurou, em busca de informações, querendo saber mais sobre a capoeira. Eles acrescentaram muitos termos nessa última publicação, inclusive novos significados para a palavra abadá. Foi uma grande satisfação ver nossa associação incluída num dos mais importantes dicionários brasileiros. Também não havia definições para a capoeira Regional e para capoeira Angola, nós que passamos."
RC: Além de capoeira, o que você gosta de fazer? "Gosto muito de bater papo deitado numa rede, ouvir música brasileira, ir ao teatro, andar a cavalo, criar animais e ficar perto da natureza. Mas tudo o que faço na vida é através da visão da capoeira. Se falo de história, política, economia, meio ambiente, enfim, em qualquer assunto, a capoeira acaba interferindo. Foi a capoeira que me ensinou a ser cidadão, a ser um brasileiro consciente e pleno."
RC: Cite-nos uma tristeza e uma alegria, na capoeira. "Tristezas tive muitas, mas alegrias muito mais! A pobreza de espírito de muitos capoeiristas; alguns alunos de mau caráter; a morte do Mestre Bimba; os Mestres antigos passando necessidade; não ter dado a devida atenção que meus filhos mereciam, em virtude da capoeira. Para compensar, tive muitas alegrias: ter saúde; meus 3 filhos; minha mulher; meus alunos; o reconhecimento das artes marciais; saber que a capoeira está no mundo inteiro e que eu participei bastante desse processo; ter criado o CEMB (Centro Educacional Mestre Bimba –RJ), ter sido aluno do Mestre Bimba; ter convivido com os grandes Mestres da Velha Guarda da Bahia; ter criado a Abadá; ser brasileiro, apesar dos pesares; conhecer muitos continentes; ser irmão de Camisa Roxa, que me ensinou a ser capoeirista de fato; ver a capoeira ser reconhecida pela sociedade, pelos meios de comunicação e pelas universidades."
RC: Qual a sua mensagem para os capoeiristas? "A Capoeira não é só jogar: todos devem procurar estudar e aprender a conviver com as diferenças. A informação e a pesquisa são os grandes trunfos do capoeirista contemporâneo. Hoje, quem não procurar estudar não vai para frente ou então será rapidamente superado por seus alunos, porque o universo da capoeira é muito rico e não tem apenas um segmento. Procurem ter contato com a velha guarda da capoeira que são os verdadeiros detentores de um saber que está desaparecendo. Este elo de ligação do passado com o presente é muito importante para o desenvolvimento da capoeira, que na verdade é uma grande árvore e o que segura é a raiz. Sem a raiz não há alimento para os novos frutos." (informação retirada da Revista Capoeira - 11-02-2007)

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